quarta-feira, 25 de julho de 2007

Comprei uma garrafa de vinho

Comprei uma garrafa de vinho para beber sentado na calçada. Uma companhia a pecar pelo silêncio e agradar pela prudência.
Saía quando encontrei um milico de origem alemã também pensionado. Antes que pudesse pensar no que seria mais adequado ou conveniente, vi-me convidando-o para beber junto, ali na frente, sentado na calçada. Ele disse que não, que teria de servir na manhã seguinte, mas a risada que deu apresentou o embaraço por ir tão contra sua real vontade em nome de um subproduto de educação cavalheiresca que nunca teve. Deixei dito que estaria ali e dei-lhe as costas, caminhando em direção à porta. Não tinha ainda completado o percurso quando ouvi-o dizer “Ah, mas eu vou, sim”.
De largada dei um grande gole. Passei a garrafa e ele bebeu na mesma proporção. Ladainhava planos de futuro miseráveis e ambiciosamente mesquinhos. Dizia estar planejando sair da pensão e ir morar com um amigo que há tempos o convidava para dividir um apartamento. Agora ia. Agora ia mesmo. “Mulher não gosta de quem mora em pensão”, disse, “ainda mais uma tão feia como a minha”. O problema, o grande problema, era o contrato de meio ano que havia assinado dois meses atrás. Balancei a cabeça afirmativamente e bebi mais um pouco. Estendi a garrafa e ele fez o mesmo. Eu olhava os prédios ao redor, ele, o chão.
O silêncio foi quebrado pela chegada de outro alemão da pensão. Olhei a garrafa instintivamente. Estava pela metade. Tomei uma grande talagada e passei ao recém-chegado. Ele bebeu, sentou-se ao meu lado e devolveu-a. Mais um gole e coloquei-a no chão, ao alcance de todos.
Os dois eram da mesma cidade. Falavam de conhecidos: Heller, Karls, Hansen... Eu brincava com a rolha. Descascava-a com a unha. No início atirava os pedaços na rua, mas logo passei a apenas deixá-los cair por entre os joelhos. Em meu distanciamento a conversa tomou contornos financeiros. O novo alemão contava que conhecia o homem mais rico da cidade, um bicheiro que lhe tinha em muita estima, tanta estima que era capaz de naquele momento ir até ali e lhe dar uma carona, caso lhe fosse esse favor necessário. Dizia ser um homem de 40 anos que mal conseguia falar, tamanha sua degradação em conseqüência do fumo e do álcool. “Eu digo pra ele: ‘Tchê, tu vai morrer’, e ele responde, rindo: ‘Vou, mas vou feliz’”. Eles riram, eu também ri, mecanicamente, concentrado na rolha, triste pela ausência de um canivete – o meu havia sido preso. Imaginava que talvez pudesse fazer uma escultura. Com a unha era muito difícil dar qualquer forma à ela. Só conseguia consumi-la e consumi-la sem nenhum outro propósito.
Mais uma rodada de vinho e o alemão contou do dono de posto gasolina que tinha uma renda bruta de um milhão por dia, depois, de quando trabalhava numa tenda de produtos coloniais à beira da estrada, do revólver que possuía, do homem que perguntou se ele não tinha medo de ficar ali sozinho – “peguei o revólver, coloquei em cima da mesa apontado pra ele e disse que quem tinha um daqueles não tinha medo de nada, haha. Já mudou de assunto na hora” -, do plano dele e do dono da tenda de montar um puteiro pra caminhoneiros e roubar o estepe deles, e mais uma ou duas verdades.
A rolha era metade do que fôra, e me assustou a quantia de fragmentos espalhados pelo chão cobrindo as canaletas dos ladrilhos gastos da calçada. Do vinho muito menos restava. Fiz descer um pouco pela garganta e passei adiante a sobra, disputada por ambos entre tapas e risos. Minha unha doía e deixei de importunar a rolha. Ficamos mais algum tempo sentados, esperando o alemão terminar de explicar seu sonho, seu sonho de montar um bar na cidade em que nasceu. Um bar temático, com capacidade para três mil pessoas. Um galpão desativado há tanto tempo que ninguém mais lembrava o que ali funcionara um dia seria o local. Bar do Pirata seria o nome. Garçons, garçonetes, músicos, djs, todos vestidos a rigor. Perguntei se existia público na cidade para um lugar tão grande e ele respondeu rindo da pergunta.
Com a bebida e a stória acabadas, o milico levantou dizendo que ia dormir, no que foi acompanhado pelo outro. Eu fiquei, sentado, olhando os carros e sendo olhado. Encaixei a rolha na boca da garrafa e virei-a. As últimas gotas do vinho escaparam da prisão de vidro através de uma deformidade da rolha e caíram banhando os pedacinhos no chão. Destampei a garrafa e tentei encontrar mais, mas agora estava tudo acabado. No chão, as gotas de vinho começavam a secar, exalando um último perfume em meio à mesma noite que de novo se acabava.

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