segunda-feira, 24 de setembro de 2007

Quando cheguei

Quando cheguei o garoto já estava chorando, prensado na parede, as lágrimas escorrendo junto ao descascado muro amarelo, adquirindo essa tonalidade e retornando ao rosto à tempo de morrer na boca. O outro sujeito forçava o antebraço contra sua nuca, gritando a cada gemido que dava para que calasse a boca e ficasse na boa. Perto, dois homens escorados em um carro observavam tudo, numa expressão que confundia o medo de rir com o medo de apiedar-se. O rapaz começou a xingá-lo, a boca colada no ouvido, fazendo com que o garoto aumentasse o choro para que pudesse ouvir a própria voz, um conforto, o único, o último, desde sempre.
A polícia não chega e começo a questionar se foi chamada. Penso em fazê-lo mas logo considero ser isso ainda mais nocivo e perigoso para o jovem. Pessoas que passam, homens, param, mulheres, viram o pescoço – para o acontecimento, óbvio. Um gringo de uma fruteira ao lado da casa do rapaz se aproxima, fica a poucos metros do mocinho e do bandido, ele não tem medo, veja só, nem nojo, e é tão macho que leva panfletado na cara um sorriso emborrachado, satisfeito. Os dois outros homens já riem, ainda que muito intimamente e tendo um o outro como alvo. Do outro lado da rua brotam espectadores. O rapaz joga o garoto no chão, ele cai chorando e assim continua, procurando na calçada empedrada o abraço carinhoso, as tetas acolhedoras da mãe áfrica que deixara para trás. O outro o manda sair dali. Grita enquanto o garoto tenta sentar e escorar as costas no muro que antes lhe servira de pedestal. Chora como uma criança, um bebê beiçudo afogado em lágrimas e muco.
As ordens para que suma dali, desapareça, não são atendidas, ou ouvidas ou entendidas. Na verdade, falta coragem, força, vontade. O outro tenta animá-lo: um pontapé com a sola do calçado na cara, no capuz branco do moletom branco que lhe cobria a cabeça, agora mais amarronzado, semelhante. Ele cai deitado, mais para o lado do gringo, contente, “virou pra cá, boa-fortuna”. Mais pessoas no ao redor. Numa esquina, na porta de um restaurante, uma jovem acompanhada com seu parceiro masculino ria, achava graça, se divertia; um atrativo antes da refeição. O rapaz continuava a mandá-lo sair dali e nunca mais aparecer, nunca mais pisar na calçada de sua casa. Ele chorava, tanto que agora já menino parecia não absorver os mandamentos, falta de respeito de último grau. Um circo, sentiu o rapaz, que decidiu ter sua recompensa ali e agora, passando a chutar o moribundo com violência, na cabeça, nas costas, no cú, recebendo e presenteando a todos com gritos horríveis de terror e desespero engasgados. Os primeiros dois homens se cutucavam mutuamente, o gringo, de braços cruzados, só faltou arrotar, a barriga cheia, pesada, bom dia, bom quebrar a rotina, pensava. Após uma sequência de golpes, o rapaz voltou a mandar o garoto embora, mas a resposta foi somente o choro entrecortando por gemidos de dor. Passava a mão nas costelas. O outro passou a pisá-lo, causando um mínimo movimento defensivo do garoto, que fracassado tentou desviar os golpes do rosto. Pisões, pisões, e a cereja, as costas arqueadas, o soco certeiro, PAM, sangue escorrendo do nariz, rasgado onde nascerá um caroço. Um sujeito ao meu lado acha melhor ir embora, pra não ter o problema de ser chamado como testemunha. O garoto estatelado no chão, em prantos, e já acho que mesmo uma maldita polícia cairia bem, alguém para lhe tirar do espancamento público, da violência gratuita. Uma mulher abre a porta, diz “Amor...”. Amor lhe dirige o olhar, ela fecha a porta, ele volta a mandar o garoto sair, mas parece que esse pesadelo pesado e concreto levou-lhe embora qualquer resquício de lucidez e discernimento, deixando no lugar apenas a dor e os desendereçados lamentos. Cansado, o rapaz pega-o no colo e joga-o na sarjeta onde corre um pequeno riacho de água escura e sacolas plásticas. Chuta-o enquanto lança os últimos desaforos. É quando de repente Um carro chega rápido e estaciona a poucos metros do local. De dentro sai já correndo um homem negro. Ele tem papéis numa mão, chaves na outra. Dispara na direção dos dois, passa por eles e entra no escritório de contabilidade ao lado da padaria ao lado da casa.
O rapaz abandona o garoto e sai de perto, dando as costas. O garoto aproveita a brecha e, com a palma da mão machucada, agarra firme uma pedra que encontra no chão, ao seu lado, companheira ocasional, irmãzinha, uma divagação certeira do destino. Sem pensar duas vezes, levanta-se apoiado nela e caminha até o outro lado da rua, onde tomba desfalecido em meio ao movimento dos que vão e dos que vêm.

quinta-feira, 13 de setembro de 2007

Antonioniou

E esse saco de gelo aí

E esse saco de gelo aí, garoto?
Ah, churrasco com a gurizada, hehe.
Ê coisa boa, meu tempo de estudante...

E esse saco de gelo aí, garoto?
Ah, vou matar aula pra tomar um litro de uísque, hehe.
Ê coisa boa, meu tempo de estudante...

E esse saco de gelo aí, garoto?
Ah, é pra conservar o corpo do meu gato no frigobar, hehe.
Ê coisa boa, meu tempo de estudante...

Emigração

Nordestinos vendendo carteiras no centro de Pelotas. O mais novo e escuro empurra o carrinho: faz curvas bruscas, sobe e desce a calçada e por fim persegue o outro que desfila zombando: “Porrrco dio!, Non vá me atropelar. Porrco dio, porrrrco dio!”. Riem da suposta italianice pelotense.

O sinal continua vermelho

O sinal continua vermelho, eta motoqueiro nervoso. Acelera no ponto morto, brrrrrrãããããã. Dou o primeiro passo da travessia quando vejo – vemos – o sinal do outro sentido amarelar. Inicio uma corrida. Ele acelera mais alto, ameaçador. Corro. Vejo pelo canto um pouco do verde, um pulinho até a calçada. Ele continua acelerando. Quando vai arrancar, apaga a moto. Vejo ele nervoso tentado fazê-la pegar. Percebe a tocaia e me flagra no momento da cusparada. Buzinas. Dá um jeito de sair o mais rápido dali, agora com a viseira do capacete fechada.

domingo, 9 de setembro de 2007

Ronaldinho

Ronaldinho embalando o nenê.
- É um novo filho, Ronaldinho? Um novo filho, que vem por aí, Ronaldinho?
- Nah, que é isso, esse gol é pro meu único filho. Eu fiz um gol pra ele no Barcelona e faltava então agora não mais um pra ele com a canarinho, né, então foi por isso. Tá, beleza.
- Ahm, mas, Ronaldinho...
- Golaço, né? De prima.
- Ah, oh, sim, sim, claro, Ronaldinho. Golaço, muito bonito. Mas hein, viu, Ronaldinho, teu filho já tem 7 anos, cara, como que tu vai homenagear um rapaz dessa idade com um embala nenê? Tá doido, Ronaldinho.
- Pô cara, sê acha? Eu nunca tinha pensado nisso.
- Pois é, Ronaldinho, e essa é só uma ponta do iceberg.
- Hmm. Falou, abaço.

O mundo dos fatos

Cansado de ver a nossa brasileira maior nadadora cair no chão e estrebuchar-se por debaixo do maiô preto que, além do deslize adequado água’d’entro, dava-lhe também a aparência de uma baleia, não tive forças para trocar o canal. Portanto, acompanhei do início ao fim a triste e desnecessária matéria do Esporte Espetacular sobre as especulações acerca do mal que acometeu Rebeca Gusmão.
Em 99 Rebeca diz “...se for esse o preço a pagar pra vencer uma olimpíada, estou disposta.”. Depois revela-se um “Tenho que ficar forte, cada vez mais forte. E se for esse o preço a pagar pra vencer uma olimpíada, estou disposta.”. A primeira versão, a oficial, sua e de sua equipe, apoia-se no sanduíche estragado, comido no dia anterior. Um médico falou da asma da atleta. Imagem de uma reportagem antiga: dia de sol, treino, ela sai da piscina e a câmera avança em sua direção. Ela, rápido, pega uma toalha e cobre o corpo. A câmera estranha, rindo, ela ri, deixa o braço esquerdo de fora. Força o bíceps e agiganta a tatuagem: DEDICAÇÃO.
As maçãs de seu rosto são cobertas por espinhas que avançam até a entrada lateral da testa – a toca esconde o couro cabeloudo. Plongée acusador. Alguns meio minutos antes da prova. Explica-se para os microfones, a sobrancelha direita vivamorta. Venceu a corrida, cinquenta borboleta.
1,78 de altura, 82 quilos na tv, 72 no site oficial. Vou mais na primeira.
Imaginei: “Vocês não deviam ter mostrado tantas vezes minha convulsão. Foi triste passar por aquilo, e vocês trataram tudo como grotescamente sensacional, sem o menor respeito. Filhos da puta.”.
“Ora, garota boleta, um pouco de moral temos de ter nesse país. Tua tragédia foi gloriosa para a causa anti-drogas.”.
“Caretas filhos da puta.”.
A reportagem pegou o caminho da asma. Sujeitos assim doentes necessitam de acompanhamento rigoroso. “Mas isso não é motivo para alarma! A asma não é o suficiente para impedir o cidadão de se tornar um ATLETA DE ALTO RENDIMENTO. O baixinho Romário e o pentacampeão Marcos são dois exemplos.”. Ela, o terceiro.

Caution

Atenção, camarada, fica de olho. Esquiadores, do leste europeu, infiltrados no latino-americano.
Hmm, sim, senhor. Ontem vi alguns mexicanos com traços asiáticos. Possuíam todos, é claro, o inconfundível bigodón, e por isso pouco me chamaram a atençón.
Sim, sim. Asiáticos, não, leste europeu. Leste europeu. Não viu nenhum leste europeu?
Eu... não sei. Tanta coisa acontece nesse hotel, tanta gente passa, tenho muitas malas para calegar. Se tivessem me dito algoguma coisa pelo menos, mas não, daí sim, de que jeito? Não tem como, se me dizem tudo bem, eu fico no bico, mas chegar assim, do nada, e querendo ainda que eu tivesse visto? Psss.
Ahmm. Certo. Mas agora então, já tá sabendo.
Agora que o senhor diz... bem, tem uma coisa que me chamou atenção, uma coisa que, imagino, interesse o senhor, o homem a lidar com os mistérios e dilemas do mundo moderno.
Sim, sim, estás correto. Todo traço, restro, troço de estranheza e confusão insegural é material de meu trabalho, rapazz.
Ok... É que... Senhor!
Diga logo.
A delegação boliviana.
Sim.
A delegação boliviana... Bem, eu, ahm...
Fale, homem.
Senhor, eu estou muito confuso... Mas acho que... Ai, deus...
Hrmff.
Senhor, são finlandeses! Finlandeses, na delegação boliviana. Pintam o rosto. Passam massa no nariz e tudo. Eu vi! Ontem. De manhã, no... café. Antes do... café.
Hrrmmff. Certo, certo. E onde eles estão?
Nono andar, senhor.
Hrmmm, o mesmo das suecas.
Sim, sim, senhor.
Hrmmffm. Adiós, marujo.

sexta-feira, 7 de setembro de 2007

segunda-feira, 3 de setembro de 2007

Carlo Ginzburg estava lá

Carlo Ginzburg estava lá. Ele e seu tradutor. Um espetáculo estético e histórico. O grandíssimo na dentistolândia, um homem da cor de vermelho. A seu lado, o tradutor, filho da excelente presidente, um faustinho agauchado dos tempos de perdidos na noite. O homem lia o texto em inglês, ele tinha em mãos o texto em inglês. A pior noite de sua vida. Nervoso, cometeu muitos erros. O fatal: ainda no início, após mirar a platéia, atirou olhando os caderotes: “Ai, eu não vou pedir pra eles pararem, eles que se eduquem e façam silêncio.”. A vaia chacoalhou o próprio estádio, que chegou a trocar de lugar, quinze cenímetros para lá. O tradutor estremeceu. Balançou a bancadinha de vidro e quase derrubou o velho guinza, concentrado num carteado online.

Na tv, agora, um negote componente de mesa-de-debates clama por justiça e processos contra flanelinhas e esmoladores em gerau.