sexta-feira, 25 de maio de 2007

Pensamento Insano de uma Mente Atormentada

Pensamento insano de uma mente atormentada, soará aos ouvidos mais alarmados. Bobagem, bobagem. Todo grande final merece e exige um sacrifício em carne. Um evento magnífico, marco de poderosas raízes, uma clara e obstinada ruptura e um ansioso e convicto novo começo.
Estava de ressaca, mas mesmo assim acordei no horário marcado: meio-dia. Demorei lavando o rosto. A barba estava grande e muitos fios se escapavam do entrelaçamento, despontando solitários rumo ao além. Torres capilares em superfície de cara.
Coloquei uma calça velha e anatomicamente rasgada e não mudei o moletom com o qual havia dormido; botei um confiável tênis de couro branco. Peguei o cartão do banco e saí.
Quando abri a porta o sol pareceu se mostrar especialmente inclinado em minha direção. Dei um primeiro passo na calçada e já no seguinte dei no meio de um alemão que vinha exatamente no sentido oposto. Ele era um pouco menor mas vinha numa velocidade maior. O resultado foi que nenhum dos dois retrocedeu com o choque. Batemo-nos na altura do peito e a inércia nos juntou as testas. Aos poucos fui enxergando melhor e recuperando o fôlego perdido com o impacto, mas antes que pudesse visualizar o sujeito com clareza, tapeamos as costas um do outro e nos despedimos.
Cheguei na esquina e esperei o sinal fechar para atravessar a rua. Ia no banco antes de qualquer coisa. Precisava de dinheiro para evitar qualquer problema. Tinha pensado em usar o cartão de crédito, mas ele corria um considerável risco de quebrar. Com cédula, o único risco que corria era o de ser incendiado. No ontem havia ligado para minha mãe. “mãe, me manda dinheiro que acho que amanhã vou embora”, “acha ou vem?”, “não sei, não sei”, “e se tu não sabe quem é que sabe?”.
O saque mais próximo era bastante longe. Quando finalmente cheguei ao prédio universitário, minhas axilas suavam. As mãos também. A boca ficou seca e os olhos lacrimejavam. Do nariz, escorria. O lugar estava apinhado de gente. Alunos em grupinhos monossexuais e professores carregando pastas caminhavam de um lado para o outro como se não tivessem outro objetivo na vida que não fosse caminhar para lá e para cá sem nunca chegar a lugar algum. Caminhar, sentido de existência.
Não havia fila. Peguei o cartão e passei o dinheiro pro bolso. Os passos estavam mais lentos. O epílogo lutava por sua sobrevivência. A cada longo e prestigioso passo, antigos esquecidos se tornavam novas lembranças. O que em alguns pressionaria à uma mudança de rumo, em mim só fez apreciar ainda mais aquele ritual. Os passos eram lentos, porém inabaláveis.
Ria, feliz. Esfregava uma mão na outra e algumas vezes levantava a cabeça para ver quem passava. Olhava em seus olhos, e só o que via era medo e estranhamento. Vi meus pés besuntados em dourado pouco antes de atravessar a grande porta. Ali fora, meu primeiro reflexo foi o de encarar o sol e mostrar a ele a cor de meus olhos.
Decidi a partir daquele ponto não fazer mais escolhas, escolhi ser carregado pelas cordas do destino. Que viesse quem tivesse que vir, que se apresentasse aquele escolhido a disputar comigo o mesmo ponto no tempo e no espaço. As dores seriam apenas decorrências passageiras de um momento único. Nada mais importava. Que acontecesse o que fôra decidido quando se decidia, eu havia abandonado toda noção de futuro. Estava morto, para o bem ou para o mal. O corpo seguiria no mesmo ritmo e na mesma direção. Um último pensamento quando os pés abandonaram a calçada e entraram no asfalto. Os olhos fecharam; as pernas continuaram.
O som da freada me despertou. Não abri os olhos, mas dei um pulinho. Foi o suficiente para me jogar no pára-brisas e me fazer rolar pelo capô até cair desengonçado no asfalto quente. Enchi os pulmões de ar, apalpei o pau e sucumbi à um breve riso enquanto uma senhora gorda corria apavorada em minha direção.

sexta-feira, 11 de maio de 2007

Relatou-se

“Um dia meu pai estava indo para casa após um dia de trabalho. Tinha comprado flores para minha mãe e uma motoca de plástico para mim, a qual vinha pedalando sob o pretexto de garantir a segurança do veículo. Não desviava de ninguém na calçada. Pilotava em linha reta, dividindo a população entre os que escolhiam passar à sua direita e portanto mais próximos da rua e dos carros estacionados, e os que iam pelo caminho que beirava muros e lojas de doces e algumas fruteiras – como a do seu Itachi, com quem o pai travou o seguinte diálogo:
- Olá, fruteira do seu Itachi, belo dia, não?
- Sim, sim, meus hortifrutigranjeiros se encontram em um agradável estado de risonhez.
- Ha ha. Mas tu, hein.
- É, é... Até mais, senhor.
- Até amanhã, até amanhã, he he.

Ao chegar na esquina papai não sabia, mas aquela atravessada de rua seria a última, e aquela quadra que faceiro percorria com o rolar de suas rodinhas arroseadas estava desde sempre destinada a marcar a despedida de seu valente e empreendedor organismo bioquímicofisicocelular.
Percorria com o olhar todo o trajeto futuro, atento a possíveis buracos na calçada, quando ouviu alguém atrás de si dizer:
- Não olhe para trás, não olhe para trás.
Papai achou que fosse uma brincadeira de algum de seus muitos amigos e virou, ansioso, já com a costumeira simpatia fraternal colada na face rude e delicada.
- Eu disse pra NÃO virar.
O homem estorou seus miolos. SEUS miolos, sacou?”

terça-feira, 8 de maio de 2007

O frio se fazia como ainda não se tinha feito

O frio se fazia como ainda não se tinha feito. Os passos eram lentos como ainda não haviam sido. As mão se fechavam no interior do bolso do casaco de lã. Caminhava sozinho em meio à rua tumultuada quando ela se aproximou e disse “Oi”.
- Oi, respondi, descongelando a alma com alguma dificuldade.
- Onde tu tá indo? – perguntou ela, sem em momento algum esconder o sorriso caloroso e espontâneo que lhe brotava na boca e germinava nos olhos.
- Lugar nenhum. Apenas caminhando.
- Humm, e porque tu tá indo pra lá?
- Não sei... Acaso...
- E o que tu vai fazer quando chegar na esquina?
- Quando chegar lá eu vejo.
- Posso te acompanhar?
- Claro.
- Me dá a mão.

Rimos.